Existem sujeitos revolucionários nas redes sociais? — Um Recorte.

Jonathan Crary diz em seu livro ‘Terra arrasada: Além da era digital, rumo a um mundo pós-capitalista” que

“a internet produz, de forma esmagadora, subjetividades autocentradas incapazes de imaginar objetivos e resultados que não aqueles consagrados ao privado, ao individual. Contudo, é raro que a minoria comprometida com a mudança social privilegie a ideia de uma transformação radical nos modos de vida em detrimento da proteção proporcionada pela atividade on-line rotinizada. Enquanto continuarem a entrar em pânico diante da ideia de modos de vida fundados no compartilhamento e na cooperação, as pessoas serão incapazes de revolta e permanecerão dependentes das instituições existentes. Eis uma verdade irrefutável: não existem sujeitos revolucionários nas redes sociais.”1

O autor entende as redes como aparatos constitutivos do capitalismo, e, de fato, ao longo da história, elas têm funcionado exatamente dessa forma. Recentemente o mundo se choca com o alinhamento da Meta à agenda de extrema direita do novo governo estadunidense, parecem se esquecer que ao menos desde de 2014 a Cambridge Analytica já utilizava dados do facebook para influenciar campanhas políticas. Podemos nos iludir ao acreditar que as redes são ágoras da modernidade, espaços livres, expressão máxima da esfera pública, mas elas não passam de uma mistura de shopping center e prisão, panópticos digitais. As redes sociais como resíduo das Big-Tecs operam na lógica de reprodução do capital.

Aqui, os meios sociais já não se distinguem das máquinas panópticas; comunicação e comércio, liberdade e controle se identificam […] O elemento social é degradado e operacionalizado como um elemento funcional do processo de produção, prestando-se sobretudo à otimização das relações de produção.2

O usuário, antes sujeito, faz-se objeto-propaganda, degradando-se a encenação de si mesmo onde cada ação é moldada pela lógica do mercado, da vigilância e da hipercomunicação. Ou, como Tolstoi observou em suas confissões:

[…] estávamos convencidos de que tínhamos de falar sem parar, escrever, publicar — o mais depressa possível, na maior quantidade possível, e que tudo isso era necessário para o bem da humanidade. E milhares de nós, repudiando, xingando uns aos outros, todos publicávamos, escrevíamos, ensinando os outros. E, sem perceber que não sabíamos nada, que mesmo diante da mais simples questão da vida — o que é bom, o que é ruim — não sabíamos o que responder. Todos nós, sem ouvir uns aos outros, não parávamos de falar, às vezes fazíamos a vontade uns dos outros e elogiávamos uns aos outros, para que depois também fizessem minha vontade e me elogiassem, mas outras vezes irritávamos uns aos outros e berrávamos uns com os outros, exatamente como num hospício.3

Se, por um lado, a descentralidade da informação possibilitou um debate contra-hegemônico, por outro, foi justamente esse sem fim de posições que garantiu a stasis. Como bem observou Michela Murgia em seu manual sobre o fascismo:

Se o obstáculo que a contemporaneidade apresenta para o desenvolvimento do fascismo é que agora todos - não somente o chefe - encontraram uma forma de fazer a própria voz ser ouvida, talvez a solução mais fascista seja exatamente deixá-los falar. Só que o tempo inteiro. Todos. Ao mesmo tempo. Sobre tudo. Sem a mínima hierarquia de autoria de opiniões. Se milhões de pessoas que antes tinham a televisão e os jornais como pontos de referência estão hoje nas redes sociais o tempo inteiro comentando, compartilhando, curtindo ou discordando, não há razão alguma para impedi-las, pois é justamente o fato de todas as pessoas estarem fazendo o mesmo que tornará a voz de cada uma indistinta das outras e definitivamente sem influência alguma.4

Há ainda um comportamento insidioso nessa comunicação: ela não é simplesmente transmitida pelos canais da rede; é filtrada, modelada e algoritmizada.

Falar nas redes sociais não é realmente falar. Depois que você diz alguma coisa, um contexto é aplicado ao que foi expressado segundo os propósitos e a busca por lucro de outra pessoa. Isso muda o que pode ser expressado. Quando o contexto é dominado pela plataforma, a comunicação e a cultura se tornam insignificantes, rasas e previsíveis. Você tem que se tornar uma pessoa totalmente louca se quiser dizer algo que sobreviverá, ainda que por um breve período, em um contexto imprevisível. Só uma comunicação imbecil pode alcançar isso.5

Se Scott-Heron profetizou no século passado que a revolução não seria televisionada, hoje no século XXI diria que a revolução não será tuitada. Nas redes sociais não se formam sujeitos revolucionários, não se forma unidade.

Surgem apenas certos ajuntamentos e agrupamentos de diversos indivíduos isolados singularmente, de egos que perseguem um interesse comum ou que se agrupam em torno de uma marca (Brand comunities) (Comunidades de marca). Distinguem-se de reuniões que teriam condições de formar um nós, de estabelecer um comércio comum, político” […] A abertura das relações de produção para consumidores, sugerida por uma transparência mútua, mostra ser, em última instância, uma exploração do social. O elemento social é degradado e operacionalizado como um elemento funcional do processo de produção, prestando-se sobretudo à otimização das relações de produção.6

Mesmo as redes sociais não hegemônicas, dirigidas por comunidades (Ex: Mastodon, PixelFed, Lemmy), que de fato representam um avanço em relação às redes comerciais, ainda “encarnam um modelo especificamente estadunidense de consumo tecnológico”7. Por mais que tenham resolvido seus problemas com o capital elas ainda se apresentam como Fac-símile de suas contra parte, herdando assim quase todos os seus problemas. A maior contribuição dessas redes é sua interoperabilidade entre múltiplas redes distintas e o fim da algoritmização, eliminando o controle psicopolítico ubíquo do panóptico. O restante é uma reprodução fiel ao modelo capitalista. A comunicação ainda é permeada de gratificações dopaminérgicas e vias de narcisização do indivíduo. Inserem-se curtidas, compartilhamentos, visualizações, notificações, emojis e figurinhas como estímulos behavioristas, saturando-se em aditividade. “As relações afetivas, dessa forma, obedecem à mesma dinâmica da lógica de consumo”. Ainda somos ratos na Caixa de Skinner.

Se faz urgente a invenção de novos modos de vida que vão além de uma reprodução calcada no modelo capitalista. “É preciso que haja uma reformulação radical do pensamento sobre quais são nossas necessidades, sobre a redescoberta de nossos desejos para além da enxurrada de anseios superficiais que são promovidos de modo tão incessante.”8, “Nós sabemos que precisamos renunciar às coisas que estão estragando a nossa vida no planeta, o problema é que as pessoas querem renunciar a elas por outras coisas mais novas e bonitas.” 9

Footnotes

  1. Crary, Jonathan. Terra arrasada: Além da era digital, rumo a um mundo pós-capitalista. Brasil, Ubu Editora, 2023.

  2. Han, Byung-Chul. Sociedade da transparência. Brasil, Editora Vozes, 2017.

  3. Tolstói, Liev. Uma confissão. Brasil, Editora Mundo Cristão, 2017

  4. Murgia, Michela. Instruções para se tornar um fascista. Brasil, Âyiné,2021

  5. Lanier, Jaron. Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais. Brasil, Intrínseca, 2018

  6. Han, Byung-Chul. Sociedade da transparência. Brasil, Editora Vozes, 2017.

  7. Crary, Jonathan. Terra arrasada: Além da era digital, rumo a um mundo pós-capitalista. Brasil, Ubu Editora, 2023.

  8. Crary, Jonathan. Terra arrasada: Além da era digital, rumo a um mundo pós-capitalista. Brasil, Ubu Editora, 2023.

  9. Krenak, Ailton. A vida não é útil. Brasil, Companhia das Letras, 2020.