Fragmentos sobre a depressão.
Estas são pequenas notas produzidas nos últimos cinco anos. Nunca tiveram a intenção de serem publicadas, eram tão-só um exercício terapêutico. Se parecem desconexas, é porque realmente são, foram escritas em épocas diferentes, sob diferentes humores. Muitas ainda omitidas pela sua pessoalidade.
“Vejam só: embora tudo desse na mesma para mim, dor, por exemplo, eu sentia” (Dostoíevski, Fíodor. O Sonho de um Homem Ridículo. Brasil: Antofágica, 2021.)
1. Decomposição. — Escrevo como registro dos pensares e divagações, sonhos e desencantos, escrevo para me decompor. Nessas linhas componho todo o mal estar de ser. Escrever é tanto exercício contra o tédio quanto socorro para a alma. Meus registros são transcrições do sentir, sentir é o suplício da expressão humana, sendo assim, não há nada de doce em minhas notas. São palavras solitárias em meio ao mar de orações, notas sobre o nada feitas em meu vazio de solidão, consolações e enigmas de uma mente inquieta.
2. The Dance is Over. — Todas as suas decepções o trouxeram aqui - igual a aquele filme. É um ponto sem retorno, The Dance is Over. É tudo um piche negro que sufoca e cega. Ele atravessa tempo e espaço, descompassando todas as dimensões. Quanto mais tempo aqui, menos tempo lá. Quanto menos tempo aqui, mais tempo lá. Às vezes o tempo parece esticar-se infinitamente ou desaparecer rapidamente. Com o tempo, tudo começa a desintegrar - eu, você, as palavras, ela - em um piscar de olhos. É como se estivéssemos observando as luzes de Natal se desvanecendo lentamente, deixando para trás apenas a memória do seu brilho. Já não existe mais nada além do insosso betume e tudo aquilo que um dia já foi. As memórias falham, os sentidos cessam. Podem ter passado mil anos ou 16 minutos, quem sabe? Cá estamos nós apenas não existindo…
3. Assombrologia. — Sinto o peso dos futuros perdidos. Sinto a dor do atrito. Sinto a angústia da inércia. O eu deu lugar ao não eu. No fim acabo me definindo como um amontoados de nãos, não sou isso não sou aquilo como se minha constituição como sujeito fosse um espaço negativo. Me caracterizo pelas lacunas, não pelo predicado. Um não-sujeito eternamente assombrado.
4. Sou barco de papel em um rio de solidão. — Com frequência adiava o despertar recusando a própria vida, porque a vida, com suas exigências e angústias, era algo que preferia evitar. Lembro-me que, ao trair a cama e abraçar as vicissitudes da vida, encontrava sempre a companhia do desinteresse. Arrasto-me, sufoco, sofro a tortura dos dias. Sinto-me sozinho em um quarto escuro, explorando as vagas formas do desconhecido.
5. Quadro em branco. — Escrever é um tormento,cada palavra um tropeço, o papel aceita qualquer palavra mas o coração nega cada uma delas. Em muitos casos é um processo tortuoso, uma negociação entre as expectativas e a mediocridade. Ainda assim, no fim do dia, gosto de escrever. Colocar as ideias no papel é de certa forma enfrentá-las, a página em branco é tanto convite quanto enigma. Cada palavra é escolhida com esmero em um processo quase artesanal que leva tempo e esforço. E mesmo assim, muitas vezes, no fim, o fruto desse trabalho é amargo. A realidade trai os anseios, as palavras falham e o resultado é menos que um amontoado de palavras concatenadas que denunciam a mais pura mediocridade.
6. O choro é a língua da alma infantil. — Assim como toda a gente, pouco tenho de memórias da tenra infância, recordo vagamente de um berço e algumas mordidas. Com certeza fiz o que todo filhote a de fazer - chorar. O choro é a língua da alma infantil, na lágrima está a voz do mistério. Os bebês choram porque, na sua mudez sentem o vazio e a dor. Eu sempre estive a lacrimar, era nos prantos em que apaziguava o constante mal estar da existência. Certa vez, olhe bem, julguei que deveria gostar de me encontrar triste visto que sentia-me tão bem ao chorar.
7. Terror noturno. — Após a infância, no limiar da adolescência, experimentei o temor. Noite após noite, com o pensamento no travesseiro inquietava-me sobre os mistérios da morte. Aqueles momentos de silêncio que antecediam o sono eram preenchidos com o pavor sobre o abismo da finitude. Questionei-me sobre Deus, sobre a extensão do infinito e a profundidade do vazio. Respostas nunca encontrei. De toda forma aqueles estranhos pensamentos pertenciam a noite, sobre a luz do sol não me atormentavam.
8. Cólera. — Oh, quão profundamente me detestei! Sempre desprezei o habitual ser a quem hábito. Carreguei cruelmente em meu espírito tamanho sentimento de cólera auto induzida. Notável tempo em que tratei tais emoções como sequelas da gnose do ser, prognostiquei parvamentente que toda a gente que obtivesse conhecimento genuíno de si, se abominaria. Pus então a tratar minha tão grosseira condição como mero fruto quisto de uma existência consciente. O ódio levou-me então à rigidez, transmutou-me então em estranha criatura, hedionda besta sobre imo julgo austero douto de si mesma em tribunal lutuoso e cerebrino onde o juiz é a própria alma. Em minha fina corte espirituosa, tornei-me réu e juiz, coadunando um julgamento inclemente de minhas próprias ações e iniquidades. Estabeleceu-se em minha bronca corte a práxis que poderia denominar-se como “punitivismo psíquico” ou a coima do suplício como ditame da alma. O punitivismo psíquico é esta nossa estranha prática, na ação disciplinar, de punir a alma, como o punitivismo penal que agonia em sofrimento o dissidente. O curioso é que o revés natural de toda punição é o ressentimento, então em minha dinâmica punitivista psíquica suportava um duplo sofrer. Primeiro através do jugo e logo o melindre.
9. Terapia. — A luz nívea dos leds refletiam em sua pele clara através dos óculos, o misto de luz e sombra formavam uma borboleta que bailava em sua face. Eu me distraia do que era dito, em fuga eu me refugiava na quimérica criatura luminosa que a minha imaginação ajudará a criar. O mundo ao redor me convocava, as tomadas, os papeis, a arte, tudo parecia um abrigo à mente naquele momento. Sua voz quase desaparecia até eu ser tragado novamente a aquela conversa em que eu não queria estar. Era como tentar manter uma conversa em um prédio em chamas, tudo em volta urgia em gritos para fugir e eu permanecia ali, sufocando. Tudo aquilo me exigia diligência da qual nunca dispus. A inquietação não me permitia pensar, uma espiral de loucura.
10. Elipse. — É como se a vida se tornasse uma elipse cinematográfica, uma omissão de tempo entre dois planos. Uma hora estou aqui outra ali. Não existe meio. Não existe o caminhar, não existe o transitório
11. Conselho de mãe. — Tradicionalmente a vida é um amontoado de acontecimentos incoerentes concatenados até a eventual morte. A morte por sua vez é o único acontecimento coerente de uma vida. É na morte, este epílogo da vida que o absurdo se dissolve, que o universo encontra ordem. A vida é uma presente estatístico, um acaso em meio a entropia do universo. Minha boa mãe, em seu mais nobre conhecimento sobre a adequada educação, ensinou-me a nunca fazer desfeita sobre o que é recebido.
12. Sonhar. — A nós cabe sonhar, sonhar para poder agir, pois o sonhar é a fagulha da ação. Infelizmente, não nos foi permitido sonhar. Era tudo sobre o necessário, o viável, o mal menor - um mundo com um horizonte tão limitado. Assumimos o papel de Jesus e Sísifo, em um sacrifício singular e um trabalho inesgotável. De repente sonhar pareceu tão ridículo, um hábito infantil há muito abandonado. Mas é preciso sonhar, o sonho é o rascunho do mundo, como almejar um mundo melhor se nem ao menos podemos imaginá-lo?