Guia Alimentar — Um Recorte.

Muitos dos alimentos que dominam as prateleiras dos supermercados ostentam em seus rótulos seus milagres nutricionais. Destacam o baixo teor calórico, o alto nível de ferro, cálcio, fibras, vitaminas ou nutrientes. A margarina com Ômega 6 que faz bem para o coração, o achocolatado com cálcio que faz bem para os ossos, o macarrão instantâneo fonte de vitaminas para as crianças. Será mesmo que essas tabelas nutricionais contam toda a verdade?

Devemos levar em conta que alimentar-se vai além de uma simples matemática. Calcular calorias, macro e micronutrientes é, antes, um sintoma da sociedade do desempenho e da auto-otimização. A alimentação, reduzida a uma equação de nutrientes isolados e descolados do contexto dos alimentos, é um reducionismo nutricional que não leva em conta a cultura, autonomia, prazer e bem estar propiciados pela alimentação. Essa redução, ou “nutricionismo” também não leva em conta “as preocupações com a qualidade de produção e do processamento do alimento e de seus ingredientes”. Veja o que Gyorgy Scrinis cientista e professor tem a dizer sobre essa tendência em seu livro “Nutricionismo, a ciência e a política do aconselhamento nutricional”:

“Uma característica-chave do reducionismo nutricional é a sistemática descontextualização da compreensão sobre os nutrientes, cujo papel tem sido interpretado fora do contexto dos alimentos, dos padrões alimentares e dos contextos sociais mais amplos em que estão inseridos. Especialistas em nutrição fizeram, por exemplo, declarações definitivas sobre o papel de nutrientes isolados, tais como a gordura ou a fibra, descolados do contexto dos alimentos em que podem ser encontrados. Esse reducionismo ao nutriente único muitas vezes ignora ou simplifica as interações entre a variedade de nutrientes dentro de um mesmo alimento, assim como dentro do corpo. Isso envolve também a associação prematura entre nutrientes únicos e doenças, como uma relação determinista ou causal segundo a qual nutrientes isolados são alegadamente a causa direta ou pelo menos o fator de aumento de risco de doenças específicas. O mesmo vale para a via contrária, exagerando o papel benéfico de nutrientes isolados. Por exemplo, os efeitos prejudiciais das gorduras totais, da gordura saturada e do colesterol dietético, e os benefícios das gorduras poli-insaturadas, das gorduras ômega-3 e da vitamina D: todos foram, sem dúvida, exagerados, quando não seriamente deturpados ao longo dos anos.”1

Nosso “Guia alimentar para a população Brasileira” é categórico quanto a importância de considerar todos os aspectos da alimentação e sua relação com a saúde e o bem-estar, nutrientes, alimentos, combinações de alimentos, preparações culinárias e as dimensões culturais e sociais das práticas alimentares.

“A Ingestão de nutrientes, propiciada pela alimentação, é essencial para a boa saúde. igualmente importantes para a saúde são os alimentos específicos que fornecem os nutrientes, as inúmeras possíveis combinações entre eles e suas formas de preparo, as características do modo de comer e as dimensões sociais e culturais das práticas alimentares. […] O efeito de nutrientes individuais foi se mostrando progressivamente insuficiente para explicar a relação entre alimentação e saúde. Vários estudos mostram, por exemplo, que a proteção que o consumo de frutas ou de legumes e verduras confere contra doenças do coração e certos tipos de câncer não se repete com intervenções baseadas no fornecimento de medicamentos ou suplementos que contêm os nutrientes individuais presentes naqueles alimentos. Esses estudos indicam que o efeito benéfico sobre a prevenção de doenças advém do alimento em si e das combinações de nutrientes e outros compostos químicos que fazem parte da matriz do alimento, mais do que de nutrientes isolados.”2

PROCESSAMENTO

Nosso Guia Alimentar dá grande importância ao tipo de processamento a que os alimentos são submetidos. É a partir desse processamento tão comum em nossa sociedade industrial que boa parte de nossa alimentação toma forma, gosto e perfil de nutrientes. O Guia Alimentar para a População Brasileira abrange quatro categorias de alimentos, de acordo com o tipo de processamento em sua produção: alimentos in natura ou minimamente processados; óleos, gorduras, sal e açúcar; alimentos processados; e alimentos ultraprocessados.

ALIMENTOS IN NATURA

Alimentos in natura ou minimamente processados, são obtidos diretamente de plantas ou de animais e são minimamente processados mas ainda assim podem sofrer alguma alteração como limpeza, remoção de partes não comestíveis, fracionamento, moagem, refrigeração, secagem, embalagem, pasteurização, fermentação, resfriamento ou congelamento. Dito isso, alimentos in natura ou minimamente processados não são submetidos a processos que envolvam agregação de sal, açúcar, óleos, gorduras ou outros aditivos.

Alguns exemplos do guia incluem: Legumes, verduras, frutas, batata, mandioca e outras raízes e tubérculos in natura ou embalados, fracionados,refrigerados ou congelados; arroz branco, integral ou parboilizado, a granel ou embalado; farinhas de mandioca, de milho ou de trigo e macarrão ou massas frescas ou secas feitas com essas farinhas e água; carnes de gado, de porco e de aves e pescados frescos, resfriados ou congelados; leite pasteurizado, ultrapasteurizado (‘longa vida’) ou em pó, iogurte (sem adição de açúcar);

Os alimentos in natura ou minimamente processados devem compor a base da alimentação diária. “[…] Pequenas quantidades de alimentos de origem animal, combinações de alimentos de origem vegetal – vários tipos de grãos, raízes, tubérculos, farinhas, legumes, verduras, frutas e castanhas – constituem base excelente para uma alimentação nutricionalmente balanceada, saborosa e culturalmente apropriada.”3

ÓLEOS, GORDURAS, SAL E AÇÚCAR

Óleos, gorduras, sal e açúcar constituem uma categoria à parte de iguarias, elaboradas a partir de substâncias extraídas de alimentos in natura ou obtidos diretamente da natureza, como no caso do sal. São geralmente utilizados no tempero e preparo de outros pratos e raramente consumidos isoladamente. “Óleos ou gorduras, por exemplo, são utilizados para cozinhar arroz e feijão, para refogar legumes, verduras e carnes, para fritar ovos e tubérculos e no preparo de caldos e sopas. […] sal é usado como tempero em todas essas preparações. […] O açúcar de mesa é utilizado para criar doces caseiros à base de frutas, leite e ovos e para fazer bolos e tortas à base de farinhas.”4

Óleos, gorduras, sal e açúcar devem ser utilizados em pequenas quantidades em preparações culinárias em função de seu alto nível calórico, alto teor de nutrientes cujo consumo pode ser prejudicial à saúde. “O consumo excessivo de sódio e de gorduras saturadas aumenta o risco de doenças do coração, enquanto o consumo excessivo de açúcar aumenta o risco de cárie dental, de obesidade e de várias outras doenças crônicas.”.5

Via de regra esses condimentos devem ser usados com moderação combinados com alimentos in natura para a criação de pratos agradáveis e nutricionalmente balanceados.

ALIMENTOS PROCESSADOS

Alimentos processados derivam de insumos in natura, mas seus processos e métodos de fabricação com a adição de sal, açúcar ou outras substâncias alteram prejudicialmente a composição nutricional dos alimentos dos quais derivam.

“As técnicas de processamento desses produtos se assemelham a técnicas culinárias, podendo incluir cozimento, secagem, fermentação, acondicionamento dos alimentos em latas ou vidros e uso de métodos de preservação como salga, salmoura, cura e defumação. alimentos processados em geral são facilmente reconhecidos como versões modificadas do alimento original.”6

O objetivo desse processamento costuma ser o de tornar o alimento mais agradável ao paladar ou estender sua conservação. Embora mantenha a maioria dos nutrientes do alimento original, os métodos de processamento utilizados como a aplicação de salmoura ou solução de sal e vinagre, a preservação de frutas em açúcar, a conservação de carnes e peixes em sal ou óleo, a produção de queijos a partir de leite e sal, e a elaboração de pães com farinha de trigo, água e sal podem transformar “o alimento original em fonte de nutrientes cujo consumo excessivo está associado a doenças do coração, obesidade e outras doenças crônicas.” Por essas razões “o consumo de alimentos processados deve ser limitado a pequenas quantidades, seja como ingredientes de preparações culinárias, seja como acompanhamento de refeições baseadas em alimentos in natura ou minimamente processados. o caso do seu consumo, é importante consultar o rótulo dos produtos para dar preferência àqueles com menor teor de sal ou açúcar.”7

ALIMENTOS ULTRAPROCESSADOS

Alimentos ultraprocessados são feitos em geral por indústrias de grande porte envolvendo técnicas, métodos e tecnologias como extrusão, moldagem, e pré-processamento por fritura ou cozimento. Têm por ingredientes substâncias de uso exclusivamente industrial. São imbuídos de corantes, aromatizantes, realçadores de sabor e vários tipos de aditivos.

Para distinguir alimentos ultraprocessados dos processados, consulte a lista de ingredientes no rótulo.

“Um número elevado de ingredientes (frequentemente cinco ou mais) e, sobretudo, a presença de ingredientes com nomes pouco familiares e não usados em preparações culinárias (gordura vegetal hidrogenada, óleos interesterificados, xarope de frutose, isolados proteicos, agentes de massa, espessantes, emulsificantes, corantes, aromatizantes, realçadores de sabor e vários outros tipos de aditivos) indicam que o produto pertence à categoria de alimentos ultraprocessados.” 8

Os desajustes dos ultraprocessados concentram-se em pontos como: Composição nutricional desbalanceada, frequentemente rica em gorduras, açúcares e sódio, e muito pobre em fibras; elevada quantidade de calorias por grama; tamanhos gigantes das porções. Mas elas vão além do mero “nutricionismo”, os ultraprocessados são formulados para serem consumidos em qualquer lugar a todo momento sem a necessidade de preparo induzindo o consumo excessivo. Seu hiper sabor induz ao hábito ou mesmo dependência. O consumo é estimulado por campanhas publicitárias milionárias e agressivas que dilapidam culturas alimentares genuínas. Sua produção industrial é danosa para o ambiente e a sustentabilidade do planeta.

Por todas essas razões, alimentos ultraprocessados devem ser evitados. Prefira sempre alimentos in natura ou minimamente processados a alimentos ultraprocessados.

“Ou seja: opte por água, leite e frutas no lugar de refrigerantes, bebidas lácteas e biscoitos recheados; não troque comida feita na hora (caldos, sopas, saladas, molhos, arroz e feijão, macarronada, refogados de legumes e verduras, farofas, tortas) por produtos que dispensam preparação culinária (sopas “de pacote”, macarrão “instantâneo”, pratos congelados prontos para aquecer, sanduíches, frios e embutidos, maioneses e molhos industrializados, misturas prontas para tortas); e fique com sobremesas caseiras, dispensando as industrializadas.” 9

O ATO DE COMER

Com a vida intensa e rodeada de estímulos em que nos encontramos hoje, o ato de comer, tão importante para a manutenção da vida, acaba ficando em segundo plano. Tomamos café na cama acompanhados pelo celular, almoçamos apressados no escritório, jantamos no escuro assistindo a TV. Cabe neste capítulo evidenciar que o tempo, a atenção, a forma e ambiente em que comemos influenciam no aproveitamento dos alimentos consumidos.

“Três orientações básicas são apresentadas: comer com regularidade e com atenção; comer em ambientes apropriados; e comer em companhia.”10

COMER COM REGULARIDADE E COM ATENÇÃO

Procure sempre fazer suas refeições diárias em horários semelhantes. Comer em horários habituais melhora a digestão, disposição, absorção de nutrientes e ajuda a controlar o quanto comemos.

“Beliscar” se tornou uma tendência, principalmente em relação aos ultraprocessados. Suas formulações de sabor acentuado e estímulos visuais fortes induzem a necessidade de comer a qualquer hora. “Portanto, é recomendável evitar ter esses produtos ao alcance da mão, seja em casa, seja no ambiente de trabalho ou estudo. Boas opções para ter ao alcance das mãos são frutas frescas ou secas e castanhas ou nozes.”.11

COMER EM AMBIENTES APROPRIADOS

“Locais limpos, tranquilos e confortáveis ajudam a concentração no ato de comer […] Telefones celulares sobre a mesa e aparelhos de televisão ligados devem ser evitados. Também é importante evitar comer na mesa de trabalho, comer em pé ou andando ou comer dentro de carros”12

COMER EM COMPANHIA

O hábito de comer, assim como a divisão do trabalho para adquirir, preparar e cozinhar alimentos foram historicamente uma atividade profundamente social. Hoje, no capitalismo do século XXI nos encontramos em um processo econômico que isola as pessoas cada vez mais umas das outras. Estendemos a pressão por desempenho e otimização até na alimentação. “O elemento social é degradado e operacionalizado como um elemento funcional do processo de produção, prestando-se sobretudo à otimização das relações de produção.”13 Assim se proliferam o fast-food, o delivery, as refeições solitárias no carro ou no escritório e tantos hábitos alimentares disfuncionais.

Comer é parte natural da vida social. “No momento em que, no mundo inteiro, culturas alimentares tradicionais, baseadas no consumo de alimentos in natura ou minimamente processados, em preparações culinárias e em refeições compartilhadas, vêm perdendo espaço e valor, torna-se cada vez mais importante que nossas melhores tradições sejam preservadas.”14

“Refeições compartilhadas feitas no ambiente da casa são momentos preciosos para cultivar e fortalecer laços entre pessoas que se gostam. Para os casais, é um momento de encontro para saber um do outro, para trocar opiniões sobre assuntos familiares e para planejar o futuro. Para as crianças e adolescentes, são excelentes oportunidades para que adquiram bons hábitos e valorizem a importância de refeições regulares e feitas em ambientes apropriados. Para todas as idades, propiciam o importante exercício da convivência e da partilha.

Comer em companhia quando se está fora de casa, no trabalho ou na escola ajuda colegas e amigos a se conhecerem melhor e trocarem experiências. Facilita o entrosamento de grupos, aumenta o senso de pertencimento e contribui para o bom desempenho de tarefas do trabalho ou da escola.”15

DEZ PASSOS PARA UMA ALIMENTAÇÃO ADEQUADA E SAUDÁVEL

Para finalizar, nosso guia sintetiza em dez passos os hábitos para uma alimentação saudável:

  1. Fazer de alimentos In Natura ou Minimamente Processados a base da alimentação.
  2. Utilizar óleos, gorduras, sal e açúcar em pequenas quantidades ao temperar e cozinhar alimentos e criar preparações culinárias.
  3. Limitar o consumo de alimentos processados.
  4. Evitar o consumo de alimentos ultraprocessados.
  5. Comer com regularidade e atenção, em ambientes apropriados, sempre que possível, com companhia.
  6. Fazer compras em locais que ofertem variedade de alimentos in natura ou Minimamente Processados.
  7. Desenvolver, exercitar e partilhar habilidades culinárias.
  8. Planejar o uso de tempo para dar à alimentação o espaço que ela merece.
  9. Dar preferência quando fora de casa, a locais que servem a refeições feitas na hora.
  10. Ser crítico quanto a informações, orientações e mensagens sobre alimentação em propagandas comerciais e estimular outras pessoas, particularmente crianças e jovens, a fazerem o mesmo.

CONCLUSÃO

Esse resumo aborda aspectos centrais do “Guia Alimentar Para a População Brasileira”. Mesmo com sua leitura ainda recomendo a leitura completa do guia.

Footnotes

  1. Scrinis, Gyorgy. Nutricionismo: a ciência e a política do aconselhamento nutricional. Brasil, Editora Elefante, 2021.

  2. Ministério da Saúde. Guia Alimentar Para a População Brasileira. Brasil,2014.

  3. Ministério da Saúde. Guia Alimentar Para a População Brasileira. Brasil, 2014.

  4. Ministério da Saúde. Guia Alimentar Para a População Brasileira. Brasil, 2014.

  5. Ministério da Saúde. Guia Alimentar Para a População Brasileira. Brasil, 2014.

  6. Ministério da Saúde. Guia Alimentar Para a População Brasileira. Brasil, 2014.

  7. Ministério da Saúde. Guia Alimentar Para a População Brasileira. Brasil, 2014.

  8. Ministério da Saúde. Guia Alimentar Para a População Brasileira. Brasil, 2014.

  9. Ministério da Saúde. Guia Alimentar Para a População Brasileira. Brasil, 2014.

  10. Ministério da Saúde. Guia Alimentar Para a População Brasileira. Brasil, 2014.

  11. Ministério da Saúde. Guia Alimentar Para a População Brasileira. Brasil, 2014.

  12. Ministério da Saúde. Guia Alimentar Para a População Brasileira. Brasil, 2014.

  13. Han, Byung-Chul. Sociedade da transparência. Brasil, Editora Vozes, 2016.

  14. Ministério da Saúde. Guia Alimentar Para a População Brasileira. Brasil, 2014.

  15. Ministério da Saúde. Guia Alimentar Para a População Brasileira. Brasil, 2014.