Matadouro-Cinco — Uma resenha

E se um dia, ou uma noite, um demônio, ou um alienígena lhe raptasse de sua pacata vida e dissesse: “Esta vida, como você a está vivendo, já viveu e viverá, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes. Todos os momentos — passado, presente e futuro — sempre existiram, sempre vão existir e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente sem início, nem meio, nem fim, nenhuma moral, nenhuma causa, nenhum efeito.”. Você felicitaria esse ser ou o amaldiçoaria?

Esse é um dilema proposto por Nietzsche reimaginado por Kurt Vonnegut em Matadouro-Cinco. Billy Pilgrim, o protagonista de Matadouro-Cinco, após vivenciar os horrores da segunda guerra, retorna aos Estados Unidos, se casa e tem uma vida pacata, mas já mais velho revela ter sido abduzido quando jovem por tralfamadorianos, alienígenas que “conseguem olhar ao mesmo tempo para todos os momentos”. Como consequência dessa experiência Pilgrim revivência sua vida momento a momento de forma quase aleatória não podendo nunca alterar seus eventos.

Originalmente o dilema do Eterno Retorno1 seria uma forma de questionar seus atos com o maior dos pesos, fazer você pensar se está bem consigo mesmo e com a vida a ponto de desejar ou não revivê-la. O elemento insidioso que Kurt Vonnegut infere ao questionamento Nietzschiano é a questão do determinismo. Se estou condenado a reviver esta vida de forma que cada momento é imutável como insetos presos em âmbar. Não muda. Nada se presta a alertas ou explicações. Sobra então apenas aceitá-los como são, ou nas palavras de Billy Pilgrim:

“Todos os momentos — passado, presente e futuro — sempre existiram, sempre vão existir. […]. Eles [tralfamadorianos] são capazes de ver o quão permanentes são todos os momentos e podem escolher qualquer um que desperte seu interesse. É apenas ilusória a impressão que temos aqui na Terra de que um momento se segue a outro, como se fossem contas em um cordão, e, uma vez acabado o momento, está para sempre acabado. […].Agora, quando fico sabendo que alguém morreu, dou de ombros e digo a mesma coisa que os tralfamadorianos dizem sobre os mortos, que é o seguinte: ‘É assim mesmo.’”

Para os tralfamadorianos e até mesmo para Billy que aprendeu com eles, os humanos devem ignorar os momentos horríveis e se concentrar nos bons, amar a profundidade de muitos momentos maravilhosos, vistos todos de uma só vez. Se não há nada que possamos fazer a respeito sobre nossas tragédias então não olhamos para elas. Uma Apatheia reimaginada.

“Tivemos guerras tão horríveis quanto qualquer outra que você já tenha visto ou sobre a qual tenha lido. Não há nada que possamos fazer a respeito, então não olhamos para elas. Ignoramos essas guerras. Passamos a eternidade olhando para momentos encantadores, como o dia de hoje no zoológico. Não é um momento agradável?”

Vonnegut está ciente das consequências dessa apolitikas e se insere metanarrativamente se questionando sobre o livre-arbítrio:

“Fomos à Feira Mundial de Nova York, vimos como tinha sido o passado segundo a Ford e a Walt Disney, vimos como seria o futuro segundo a General Motors. E eu me perguntei a respeito do presente: qual seria sua larg”ura, qual seria sua profundidade, o quanto dele me pertenceria.

Os tralfamadorianos que raptam Billy também discorrem:

“Terráqueos são os melhores explicadores. Explicam a razão de um evento estar estruturado de certo jeito, indicam como atingir ou evitar outros eventos. Sou tralfamadoriano, enxergo o tempo talvez da mesma forma que você enxerga um trecho das Montanhas Rochosas. O tempo em sua inteireza é o tempo em sua inteireza. Não muda. Não se presta a alertas ou explicações. Apenas é. Aceite cada momento e descobrirá que somos todos, como já mencionei, insetos presos em âmbar.”

Eu não consigo não ouvir o eco inquieto de uma resignação niilista no discurso Tralfamadore. Me sinto como Pável Petróvitch incrédulo com Bazarov2: “Mas agora basta que digam: tudo no mundo é absurdo! E está no papo. Os jovens se alegram, E, de fato, antes eram simplesmente uns paspalhos, mas agora, de repente viraram niilistas”. Mas nas minhas palavras “Mas agora basta que digam: É assim mesmo, esse momento está estruturado assim! E está no papo. Os jovens se condescendem. E, de fato, antes eram simplesmente uns paspalhos, mas agora, de repente viraram tralfamadorianos.”

Essa indiferença tralfamadoriana “além dos limites, sem intenção ou consideração, sem misericórdia ou justiça, fecundo, estéril e incerto ao mesmo tempo” pode momentaneamente nos resguardar do absurdo ao mesmo tempo que nos embevece nos pequenos e grandes prazeres mas enfim não passa de tirania consigo mesmo. É possível simplesmente ignorar todas as dores, todos os horrores de forma estoica e viver uma eterna glorificação hedonista? Esse é o dilema que temos ao ler Matadouro-Cinco.

Vonnegut é novamente ciente desse problema e imprime na obra um cinismo cruel. Violências, torturas, mortes, fuzilamentos, bombardeiros, incinerações, doenças, acidentes, prisões. É assim mesmo? Uma passagem marcante é a de um prisioneiro andarilho nos trens alemães rumo a Dresden. A situação é precária, centenas de pessoas presas em pequenos vagões.

“Ninguém podia sair até chegar ao destino final. Para os guardas que zanzavam do lado de fora, cada vagão se tornou um organismo único, que comia, bebia e evacuava pelos respiradouros. Também falava, e às vezes até gritava pelos respiradouros. Entravam água, pão preto, salsicha, queijo; saíam merda, mijo, linguagem.”

Mas esse andarilho, dia após dia, estoicamente pronunciava as palavras “Isso aqui nem é tão ruim. Eu fico à vontade em qualquer lugar”. No nono dia, o andarilho morreu. O narrador como em toda passagem mórbida tem apenas para dizer: “É assim mesmo”. Esse padrão volta a se repetir por todo o livro. Outro trecho que estas mesmas falas me marcaram foram:

“Robert Kennedy, cuja casa de veraneio fica a 13 quilômetros da casa em que moro o ano inteiro, foi baleado duas noites atrás. Morreu noite passada. É assim mesmo. Martin Luther King foi baleado um mês atrás. Ele também morreu. É assim mesmo. E todos os dias meu governo me fornece uma contagem dos cadáveres criados pela ciência militar no Vietnã. É assim mesmo.”

O que me faz pensar que por maior que seja a necessidade de não se preocupar com o que está além do controle e em certa medida aceitar as coisas como são, para mim Billy Pilgrim ao tentar viver ao modo tralfamadoriano acaba por emular Pangloss3, não com o “melhor no melhor dos mundos possíveis” mas com “o único mundo possível”. Nisso me é caro o final que longe de repetir seu célebre chavão “É assim mesmo” é enfim, apesar de toda a morte e tragédia, é a confirmação de um desejo, um desejo de dignidade.

“O’Hare tinha um bloquinho que nas últimas páginas trazia tarifas postais, distâncias aéreas, alturas de montanhas famosas e outros fatos cruciais sobre o mundo. Estava procurando a população de Dresden, que não constava do bloquinho, quando topou com isto, que me passou para ler:

“Em média, nascem 324 mil bebês por dia no mundo. Ao longo desse mesmo dia, 10 mil pessoas, em média, terão morrido de fome ou desnutrição.* É assim mesmo. Além destas, 123 mil pessoas morrerão por outros motivos. É assim mesmo. Com isso, resta um saldo de cerca de 191 mil novas pessoas por dia no mundo. Segundo o prognóstico do Escritório de Referência Populacional, a população da Terra vai dobrar para um total de 7 bilhões de habitantes antes do ano 2000.

— Acho que todos eles vão querer dignidade — comentei.

— Acho que sim — concordou O’Hare.”

Footnotes

  1. Nietzsche, F. A gaia ciência.

  2. Turguêniev, I. Pais e filhos.

  3. Voltaire. Cândido, ou o otimismo.